11.12.09

Um juiz improvável

Em uma madrugada serena de novembro, Pierre Nougat, neto de franceses, cruzava, nervosamente, a Praça Sete, em Belo Horizonte, com um volumoso estojo de couro dependurado nas costas. O homem andava apressado, olhando para os lados, como se tivesse medo de ser roubado.

De fato, o que Pierre tinha nas costas era algo muito digno de ser roubado. Dentro do estojo de couro se encontrava um violoncelo caro, feito com madeira italiana, acabamento de primeira, assinatura de um Luthier bom de serviço. Devia valer seus dez mil reais, e, além disso, chamava muito a atenção: o violoncelo é um instrumento musical enorme. Notavelmente, carregar um objeto desses no centro de Belo Horizonte à noite não é algo que se deva fazer.

Chegou ao outro lado da praça, ofegante. Mais uma vez, olhou para os lados, ajeitou a alça de couro sobre seu ombro, e, apoiando-se no poste de luz, acendeu um cigarro com seu isqueiro. Quando estava guardando o pequeno objeto em seu bolso traseiro, viu um vulto andando nas sombras. Apavorado, Pierre largou o cigarro no chão e recuou, até penetrar na penumbra, onde a luz do poste dificilmente alcançava, e quase soltou um grito quando sentiu o instrumento caro esbarrar de leve em alguma coisa macia. Uma mão forte apertou sua boca, sentiu seu braço direito ser firmemente segurado, e uma voz grave disse-lhe ao ouvido:

- Não grite, ou as coisas serão exponencialmente piores para o seu lado. Apenas passe o violoncelo.

Com a mão livre, Pierre tentou aliviar o aperto do homem estranho em sua boca. Este soltou sua mandíbula, mas não soltou seu braço.

- Do que você está falando? – perguntou o descendente de franceses, arfando, tentando enganar o ladrão.

- Você sabe muito bem do que eu estou falando, me passe agora esse seu presentinho de dez mil contos ou eu te dou uma facada no pescoço, está me entendendo?

Pierre achou que fosse apenas uma piada para intimidá-lo, até perceber o brilho de uma lâmina muito bem afiada tangenciando seu pescoço. Apavorado, implorou:

- Por favor, amigo, não faça isso... O violoncelo não é meu. Se acontecer alguma coisa com ele, serei punido...

- Primeiro, cidadão: eu não sou seu amigo. Segundo: Acho que é melhor ser punido do que morrer com uma facada no pescoço, não?

Sem esperar resposta, o ladrão puxou o estojo do violoncelo pela alça, e enfiou o punhal que estava segurando no pescoço de sua vítima. O sangue começou a jorrar, Pierre caiu de joelhos e, um milésimo de segundo antes de desabar no chão sem vida, puxou a faca de seu pescoço e, com o máximo de força que pôde a enfiou na perna do assassino.

Pierre acordou depois do que lhe pareceram cinco minutos em uma sala, toda feita de pedras. Olhou para sua camisa ensanguentada, e logo se deparou com um profundo furo em seu pescoço que, no entanto, não doía nem um pouco. Ele estava, sem dúvida, morto. Olhou para o seu lado, e se deparou com outro homem, deitado, com um corte enorme na perna, como se esta tivesse sido rasgada: seu assassino, que havia tentado roubar seu violoncelo. O assassino, então, abriu os olhos e se sentou, sem dificuldades, olhando para os lados e tentando compreender.

- O que está havendo? – perguntou o assassino – Quem sou eu? Quem é você? Onde estamos?

- Quem é você? Você está brincando comigo, certo? Você acabou de me matar!

- Eu? Eu te matei? Meu Deus! – disse o homem, assustado – Não é possível, eu nunca faria isso a alguém! Aliás, quem exatamente sou eu? Céus, eu não me lembro de nada!

- Você é nada além do meu assassino! Você me matou com uma facada no pescoço, olha aqui – disse, mostrando o corte no próprio pescoço – E você ainda tem coragem de dizer que não se lembra de nada. Agora, estamos eu e você provavelmente na fila pra entrar no Inferno!

- Como assim? Eu também estou morto? – perguntou, e, logo em seguida, viu o corte imenso em sua perna – Eu estou morto. E foi você quem me matou. Seu idiota, por que você fez isso?

- Eu que lhe pergunto! – gritou Pierre, indignado – Você me aparece na Praça Sete às duas da manhã, rouba meu violoncelo caríssimo, que, aliás, nem era meu, e ainda me mata cortando meu pescoço. Eu simplesmente tentei me defender e enfiei a faca em você.

- Primeiro, cidadão: eu nunca roubei e nem roubarei nada de ninguém. Depois que eu nunca matei e nunca terei coragem de matar uma pessoa. E terceiro: você simplesmente enfiou a faca em mim por legítima defesa?

- É isso mesmo! E você, seu covarde, tentando se safar de ir para o Inferno inventando essa historinha que você não se lembra, que você é muito inocente, que você nunca faria uma coisa dessas. Nunca faria mas fez, seu imbecil.

Com um salto, o assassino se levantou, e Pierre o acompanhou.

- Não me chame de imbecil! – gritou o assassino.

- Então não negue que você tem culpa em tem feito o que fez!

- Eu não fiz nada disso!

O descendente de franceses não respondeu. Apenas cerrou os punhos e, com uma velocidade incrível, acertou o rosto de seu rival. Nesse momento, surgiu uma labareda de fogo a um metro dos homens, e dela saiu um ser alto, com a face rija, o olhar satânico, as pupilas em fendas e um par de chifres da cabeça. Era, sem dúvida, o Diabo.

- Escutem os dois! – disse o ser, e os homens imediatamente se separaram, sobressaltados – Eu sou o Diabo, e eu já fiz coisas muito, realmente muito ruins. Mas uma coisa que eu não admito, absolutamente, é o fato de dois mortais inocentes se agredindo em na porta dos meus aposentos.

- Inocentes? – perguntou Pierre, indignado - Senhor Diabo, esse homem me roubou e me matou, como ele pode ser inocente?

- Este homem, senhor Pierre, estava sob efeito de uma erva alucinógena que o obrigaram a tomar. A culpa não é dele, acredite. A culpa é de quem deu o alucinógeno a ele, que, aliás, já está sendo punido, e muito punido... – disse, parecendo se deliciar com o fato – Senhores, se continuarem a brigar aqui, terei de tomar medidas drásticas: mandar ambos para o Inferno.

Os homens arregalaram os olhos, assustados, e o assassino de Pierre - que se chamava Agripa Bernardes, embora não se lembrasse disso - gritou:

- Eu não vou para Inferno nenhum! Quem começou foi ele! – disse, apontando para Pierre, como uma criança mal educada – Eu não tenho culpa de nada, foi ele quem começou a me agredir!

- Comecei a te agredir porque você falou coisas absurdas! Quem não vai pra Inferno nenhum aqui sou eu! Eu não roubei ninguém, e eu não matei para roubar, matei para me defender!

- SENHORES! – berrou o Diabo, com a voz demoníaca cheia de ira – Queiram, por obséquio, se acalmar! Eu já lhes disse que nenhum dos dois tem culpa, e que não precisam brigar. Só vão para o Inferno aqueles que fazem coisas realmente muito ruins por vontade própria e gratuitamente, o que não é o caso de nenhum de vocês, a menos que insistam em brigar em minha presença, o que eu considero extrema falta de respeito. Caso não se lembrem, eu sou o Diabo, e eu tenho autoridade.

Os homens trocaram olhares cheios de receio, mas, passados alguns minutos, Pierre deu um passo à frente e estendeu sua mão. Como Agripa hesitasse em apertá-la, disse:

- Amigo, o senhor Diabo tem razão. Não posso duvidar dele, eu acredito que você não tem culpa. Por favor, me desculpe, eu agi errado em duvidar de você.

Houve um momento de silêncio. Agripa, então, finalmente deu um passo à frente e, apertando a mão de Nougat, disse:

- Obrigado por acreditar em mim, cidadão. Me desculpe também pela minha grosseria, e, bem, por ter te causado isso... – disse, sem graça, indicando o pescoço de Pierre – Mas não foi minha culpa, você sabe.

Pierre Nougat e Agripa Bernardes não foram nem para o Inferno e nem para o Céu. Ambos foram para o Purgatório, passar a eternidade, e se tornaram grandes amigos. Uma amizade estranha, provinda de um conflito resolvido pelo Diabo em pessoa.

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Nota:
Esse foi o conto com que eu concorri para o concurso de contos da V Semana da Conciliação, no TRT, do qual participaram alunos da 2ª série do Ensino Médio do meu colégio, o Colégio Santo Antônio, e do Coltec, Colégio Técnico da UFMG. Espero que tenham gostado!